sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

UMA PEQUENA ESTÓRIA DA HUMANIDADE.

Numa noite fria de agosto, um homem e uma mulher exercem a mais absoluta forma de animalidade, tenho uma relação sexual sobre restos de lixo, num beco escuro da cidade. Bêbados e drogados, eles ignoram tudo o que as camadas do neocórtex tem acrescentado ao longo dos milênios no cérebro humano, dando-nos algumas características mais especializadas, como a capacidade de pensar, emocionar-se, apaixonar-se ou exercer o simbolismo e vivenciar os sentimentos mais nobres. Não... ali, tratava-se de dois bichos em transe, exercendo exclusivamente a ditadura do instinto, na busca da geração de mais uma vida. Num encontro que, mais tarde viria a ser visto como um lamentável golpe do destino, um óvulo e um espermatozóide se encontram, e se desencadeia a inacreditável sequência que iniciará uma nova vida. Após nove meses, nasce uma criança do sexo masculino. Abaixo do peso, desnutrido, num corredor lotado de um hospital público, sob o descaso conivente de médicos e enfermeiros indiferentes, que se cobrem com o confortável guarda-chuva da lama que brota do seio dos políticos. O menino recebeu o nome de Francisco, e, logo após recobrar pobremente a capacidade de respiração, quase perdida pelas péssimas condições do parto, foi levado para o barracão da favela, onde os pais "moram". Francisco cresce como convém, entre esgoto e ratos, entre brigas e tiros, entre fome e carências de todas as formas. A cor de sua pele negra e seus cabelos crespos começam a despertá-lo para a crueldade da humanidade. Nos mais diversos setores onde passa a conviver, sente-se olhado de forma diferente, por sua aparência e, principalmente, pela pobreza. Na adolescência, o destino, ainda mais irônico, faz-lhe aflorar um outro desafio: Francisco descobre-se homossexual, apesar do ambiente homófobo em que vive e viverá, durante toda a sua vida. Por falta de informação adequada, que resulta da péssima educação que recebeu na escola pública do bairro, sustentada com os impostos de quem paga uma das maiores cargas tributárias do mundo (claro, a maior parte vai para o bolso dos políticos), fez sexo, pela primeira vez, sem preservativo, com um portador de HIV. Aos 19 anos, Francisco era negro, homossexual, pobre, semianalfabeto, portava HIV, desempregado e solitário. Foi ficando cada vez mais triste, mais sem perspectivas, e resolveu não mais frequentar a igreja do bairro, contrariando os conselhos de sua mãe, que, indo lá, se purgava pela vida regada a prostituição, alcoolismo e pequenos roubos. Francisco assumiu que era ateu, que não poderia existir um "pai" supremo que abandonasse um filho, ao ponto do puro desespero, como se encontrava. Nessa decisão, provavelmente a mais grave de todas sob a ótica da sociedade, ele encontrou a última peça do quebra-cabeças que o impulsionava à condenação total. Tudo, menos ser um ateu!! A partir daí, o sangue simbólico da inquisição, do fundamentalismo islâmico, da intolerância judaica, do poder político, econômico e social das igrejas, tudo caiu-lhe sobre a cabeça como uma bomba atômica. Nada mais lhe seria possível, a partir de então. Expulso de casa, sem emprego, sem família, sem comida, pobre, negro, homossexual, portador de HIV, e, ainda por cima, ateu?????? a ditadura do gene egoísta acionou o carimbo: INADEQUADO. A partir daí, era uma questão de tempo, para que esse aglomerado de três trilhões de células começasse um lento e doloroso processo de degeneração, sob a forma de decreptude, doenças e desnutrição. Convenientemente, Francisco foi-se esgueirando pelos bancos de praças, pelos sinais de trânsito, pelos becos escuros. Inacreditavelmente, voltou ao "seio materno", morrendo sozinho, numa noite fria de agosto, no mesmo beco escuro onde foi gerado. Pela manhã, o caminhão de lixo recolheu aquele resto de corpo, junto a restos de comida, ratazanas e caixas de papelão de grandes TVs LCD, comprimindo tudo. Um grosso caldo escuro escorreu do caminhão, misturando suco de frutas e carnes podres com o sangue de Francisco. Caindo no asfalto, o caldo formou uma mancha escura, que foi, nas próximas horas, convenientemente lavada pela forte chuva que caiu à tarde. Os restos de Francisco se separaram. Parte, foi para o lixão, onde serviu de um farto alimento para os urubus que infestam o local. Parte, foi para os esgotos, de onde chegou aos rios e ao mar. Do mar, algumas partículas que o constituíram foram evaporadas pela ação do sol, e poucos de seus elétrons caíram de volta sobre a cidade, lavando o beco escuro, palco de sua vida e morte. Talvez, alguns chamem isto de reencarnação.  

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

VISÃO DO AMOR

"Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Por não esperar."

(Cecília Meireles)

Sempre me perguntei qual a função do amor para a humanidade ou para o planeta, ou, em plano mais amplo, para o universo. Mesmo em tempos de uma certa devoção aos preceitos tradicionais da religião católica, que há tempos não mais abraço, sempre duvidei do que se supunha ser a função do amor, no sentido tradicional do termo.
Meus diversos anos dedicados ao estudo da função e estrutura do sistema nervoso modificaram profundamente o meu pensamento.
O cérebro é o grande gerador de tudo o que se entende como sentimentos e emoções humanas. Nele nascem as complexas e extraordinárias reações eletroquímicas que resultam na percepção psíquica do amor. Já se comprovou que corretas estimulações dopaminérgicas no sistema límbico e no lobo frontal podem provocar sensações semelhantes ao estado de "embriaguez lúcida" que ocorre na paixão. O cérebro é capaz de provocar um estado eletroquímico que simula a ação de poderosas drogas antidepressivas ou ansiolíticas, pela simples ativação das vias dopaminérgicas relacionadas à recompensa.
Será, portanto, o amor uma forma de recompensa, a ser desencadeada como estímulo e busca?
Provavelmente, a principal função do amor seja aproximar dois seres humanos, para que, inebriados e embriagados pelo amor, eles possam procriar, através de uma relação sexual, que, não fosse pelo sentimento, seria um ato no mínimo estranho, para não dizer bestial...
Mas o amor também une amigos, familiares, irmãos e tem estranhas e desafiadoras variações, como ocorre na homossexualidade. Seriam expressões diferentes de um mesmo fenômeno eletroquímico ou tudo estaria dentro de um grande "pacote", que visa à manutenção da espécie?
Também entre amigos, o amor provoca a liberação de ocitocina, um poderoso hormônio relacionado à procriação e à elaboração de atos que possibilitem o estabelecimento de proles e sociedades. 
Um amor não correspondido provoca uma morte lenta, fria, seca, dura. O amor platônico dói como a maior e mais letal picada de uma naja indiana, consumindo aos poucos, como quem desdenha do padecer de quem sofre. A natureza não perdoa quem não consegue compor um amor recíproco, tradicional, avassalador, reprodutivo, social e biologicamente correto. E a natureza é cruel quando pune. Porque ela não perdoa. A ela, e preservação de um indivíduo é absolutamente indiferente, se ele é incapaz de estar no centro ou no alicerce de uma construção familiar sólida, para possibilitar a continuação da saga genética do ser humano.
Cinicamente, a construção cerebral acerca do amor mantém sua foice punitiva aos que não se enquadram, ainda que eles, num lampejo de pseudo-intelectualidade, compreendam onde e como ocorrem as armadilhas espalhadas pela ditadura genética.
Como no poema de Cecília Meireles, provavelmente outra "amadora" (não no sentido "não-profissional", obviamente), percebe-se o eterno abismo existente entre o que se quer e o que se pode ter, quando busca-se o amor, em todas as suas formas.
Enquanto isso, prossigam-se os romances, os casamentos, as buscas incessantes por um parceiro para dividir a existência, prossigam os preconceitos, as limitações e as punições para os que não puderam ou não quiseram (talvez, dê no mesmo) amar plenamente.