domingo, 28 de agosto de 2011

BREVE POEMA SOBRE O RIO





Lava a nossa alma, calmo rio.
Tira os grãos de pó-peso e os estrondos-lamentos.
Mistura em tua turbulência nossas incertezas
Inclui em teu volumoso corpo o nosso cansaço
Dilui nossas lágrimas, como gotas atirada ao mar.


Expõe a nossa alma, doce rio.
Mas não sê impassível, indolente, indiferente.
Traz um pouco de ti para dentro de nós
Não no que carreias para o longínquo litoral
Mas em tua sabedoria milenar de um curso só.


Ajuda a nossa alma, impávido rio.
Transfixa-nos com o frio de tuas moléculas
Que se fundam à nossa combalida matéria
Não no que trazes de restos decompostos,
Mas no adubo que levas à jusante. 


Recolhe a nossa alma, cúmplice rio.
Popa-nos do escárnio  de uma batalha perdida
Recolhe-nos antes à tua pertinaz escuridão
Até que nos sobre a tão sonhada paz
Que de ti desde sempre emanou. 

domingo, 21 de agosto de 2011

A PAZ QUE VEM DO CICLISMO





Uma tarefa quase impossível: descrever a paz que se sente ao pedalar. Essa foto (feita por meu irmão de fé, Gileno) captou uma expressão muito interessante.


Diversas torrentes de vendavais e tempestades me habitam, desde sempre. Desde a infância. Acho que desde a vida intrauterina! São questionamentos eternos, uma autocrítica dilacerante, um perfeccionismo insuportável. 

A despeito de ser uma pessoa calma, tenho, verdadeiramente, raríssimos momentos de paz. Falo de uma paz profunda, que invade as vísceras e o espírito, como uma água morna a lavar os porões. Falo de uma paz que subverte as limitações, os medos, as angústias, as dúvidas, as incertezas. 
Falo de uma paz que ignora a crueldade humana, a rudeza das relações cotidianas, a frieza do mundo cibernético. 


O ciclismo me traz momentos de uma profunda e indescritível paz interior, difícil de descrever em palavras. 


Vou tentar descrever alguns dos motivos que me trazem essa paz, com base na expressão que captei em meus próprios olhos, nesta foto.

Primordialmente, pedalo na companhia de meus melhores amigos. Amigos que fui pinçando ao longo dessa estrada. Amigos que, algumas vezes, são expostos à ponta do iceberg de minha inquietação interior, entrando em choque com meus sentimentos nada convencionais. Amigos a quem já tive de pedir perdão, com a humildade verdadeira de quem se percebe inadequado e complexo, em tantos momentos. Amigos que suportam, geralmente com bom humor, minhas pequenas crises de ciúmes, insegurança e carência afetiva. Amigos que chegaram e ficaram, pelo simples fato de ter compreendido, ainda que de forma intuitiva, que meu sentimento é maior do que meus momentos de turbulência, que podem trazer transitórios dias de sofrimento mútuo. Amigos como Gileno, Luciano, Leo e Charles (tenho outros, mas esses são emblemáticos). Sei que "amar significa jamais ter de pedir perdão", mas, sinceramente, sou um pedido de perdão ambulante!! 

Depois, tem a simplicidade do ciclismo. De forma lúdica, estamos todos num mesmo jogo de diversão e esporte, nutridos pelo mais absoluto altruísmo. Não há interesse algum, exceto o de compartilhar o momento, da forma mais leve, alegre e positiva possível. Todos somos iguais naquele momento. Não há diferenças sociais, econômicas, políticas ou de quaisquer outras naturezas. Pelo menos, não o suficiente para comprometer ou macular nossos encontros. É o gostar, pelo gostar. Intransitivamente.

Por outro lado, tem aspectos metaforicamente interessantes, relacionados à superação de obstáculos, descobrimento de novos caminhos, desafios, aprimoramento de técnica. A bicicleta é uma extensão de nosso corpo. Torna-se uma amiga (caro leitor: você só compreenderá essa parte se for ciclista, não adianta tentar...), uma irmã, uma companheira inseparável. Praticamos mimos, lavamos, limpamos, lubrificamos, e, acima de tudo, dividimos esse universo mágico com essa maquininha mágica e simples.

Paralelamente, levo, sempre, minha linda família a tiracolo. Toda ela. Desde os avós até os mais novinhos, como minha Mariah. Todos juntos, na mente, no peito. Uma oração diferente, não atrelada a religiões, mas unida ao milagre de fazer parte de uma natureza perfeita, que tolera a presença dos humanos, ainda que sendo repetidamente agredida por eles. Minha família vai junto comigo, em exemplo, significado, sentido de vida. Em tudo.

Nesta foto, estou segurando minha bike, olhando para um inesquecível por do sol. Como se pudesse pedalar até onde o sol se põe, num mágico caminho de fogo, que pudesse amalgamar meus tecidos aos da mãe-terra. 

Encerrado mais um pedal, começa um novo intervalo de espera, que se justifica até que um outro apareça. E a vida vai seguindo seu ciclo, inexoravelmente. Como parte dele, não me cabe julgar ou negar. Apenas, aceitar. Dentro do que é possível.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CARTA A ELIS REGINA



Querida Elis: uma ínfima parcela da população da provinciana cidade de Campina Grande, interior da Paraíba, estava exultante pela chance de ver, pela primeira vez, um show de sua filha, Maria Rita, em nossa cidade. Há cerca de três meses, os esforçados produtores lotaram a mídia com outdoors, comerciais em rádio, TV e jornal, mensagens na mídia e num boca-a-boca gigante. Felizes e inocentes, nós, os fãs que aprendemos a amar o trabalho honesto, eficiente e impecável de sua filha, passamos a contar as horas e os minutos para o encontro que se daria no dia 13 de agosto. Muitos de nós chegaram a cancelar encontros e compromissos, para que não se subvertesse o compromisso magno de prestigiar a jovem cantora. Como você deve estar vendo daí, Elis, Maria Rita aprendeu direitinho a lição. Aprimorou tudo o que recebeu de herança, sua e de César Mariano, no retiro voluntário nos Estados Unidos. A voz traz sua marca registrada, no timbre e na extensão. Não é só isso: Maria Rita também herdou o seu fraseado, a ginga, e, principalmente, a entrega desavergonhada (no bom sentido) diante de cada canção. Poucas cantoras no mundo se arriscam a tal nível de entrega, exatamente como você fazia, com tanta maestria.
O que não sabíamos é que o fantasma da mediocridade nos espreitava, brotado dos becos escuros da nossa cidade provinciana. O fato é que apenas cem ingressos (pasme, Elis, cem ingressos) foram vendidos, obviamente inviabilizando o aparato comercial que envolve um show de grande porte, como é o de sua filha. Claro, o show foi cancelado.


Elis, hoje, paradoxalmente, fiquei feliz por você já não estar mais entre nós. Explico: num Brasil dominado pelo funk carioca, pelos forrós de plástico, pelo visgo do sertanejo, quem perderia tempo ouvindo sua voz rasgante, dilacerante, intensa, única: quem compreenderia sua co-autoria, ao dar interpretações definitivas às canções que você cantava? quem pagaria ingresso para ouvir seu estilo arrebatador ou conhecer os novos compositores que você apresentava ao grande público?
Não, Elis... assim como Campina Grande disse "não" a Maria Rita, diria também a você. Maria Rita supera, especialmente porque está em turnê pelas grandes cidades do país e pelas principais cidades do mundo civilizado. Maria Rita é jovem, intensa, integrada à fugacidade da mídia atual. Você não... você não suportaria a crueldade de ser considerada "cafona, out, velha, caquética". 
Estamos profundamente envergonhados, Elis. Maria Rita talvez jamais volte a Campina Grande. Acho que não deve voltar, mesmo. O trabalho dela está anos-luz adiante do que a maioria de nós poderia compreender. Há que se viver décadas, ainda, para que possamos aceitar e entender o lindo trabalho de sua filha. Enquanto isso, restam-nos seus discos, para dar alento a estes dias de tanta rudeza e mediocridade. Que seus discos (e os de Maria Rita) nos salvem. Amém.