sábado, 27 de abril de 2013

DOIS MESES DO ACIDENTE



Tenho um amigo que sempre me chama a atenção para não escrever coisas particulares em redes sociais... confesso que tenho uma tendência a me expor mais do que o que seria politicamente correto, mas tenho me corrigido, inclusive por força de seus argumentos advocatícios...

Aqui, entretanto, é meu espaço, aqui falo e penso sobre o que eu quiser. Leia também quem quiser.

No último dia 23 de abril, completei um "aniversário": dois meses longe dos meus pedais, após um acidente, ocorrido em 26 de fevereiro, que me levou a uma longa peregrinação em busca de reabilitação, que ainda está longe de terminar.

Após o acidente (queda de bicicleta), com luxação do polegar direito como principal lesão (nem vou comentar as outras, que incluem cortes, escoriações e arranhões, além de uma quase fratura de côndilo mandibular, bem como um pequeno traumatismo craniano), fui "premiado" com uma descoberta: o trauma provocou mais do que a simples luxação do polegar. Junto com o deslocamento traumático da falange distal, houve, dentre várias outras lesões estruturais internas, o rompimento do ligamento ulnar do polegar. Por questões anatômicas, esse ligamento não se recompõe espontaneamente, há necessidade de uma intervenção cirúrgica.

Após um primeiro mês de intensa dor, edema, imobilização, disfunção, quando achava que tudo começava a voltar ao normal, passei por uma cirurgia na mão, para a citada reconstrução ligamentar.

Após a cirurgia, feita pelo excelente ortopedista Bruno Montenegro, começava outro tormento: um mês de imobilização do polegar, incluindo uma tala que também imobilizava o punho.

Vou me abster de maiores detalhes sobre o que significa imobilizar o polegar. Só quem já passou por isso, sabe o que significa. Das pequenas dificuldades, como vestir roupas, calçar sapatos, escovar dentes, segurar objetos, escrever, às médias, como dores, incômodo constante, parestesias, edema, foi um mês de intensa provação.

Há uma semana, livre da imobilização, incio a terceira etapa do longo processo, que, espero, me devolverá a mobilidade e saúde de minha mão. A mágica da fisioterapia, feita pelo primo André Santos, é uma palmada de mãe: a gente sabe que é para o bem, mas que dói, dói... os primeiros movimentos, a partir de um polegar praticamente congelado, têm sido conseguidos à custa de muito sacrifício, e, obviamente, de dores intensas. Lentamente, o movimento vai ressurgindo, como se estivesse sendo desatado de faixas que o mumificavam.

Entretanto, o que mais pesou nesse período todo foram as questões psicológicas.


Inicialmente, a sensação de abandono, no momento do acidente e no processo de encaminhamento ao hospital, algo inominável. Sempre fui solícito com os que precisaram, pois, intuitivamente, eu sabia o quanto seria doloroso não contar com as pessoas, exatamente no momento de mais intensa fragilidade. Tal sensação de abandono ocorreu em parte por culpa minha, por estar sozinho no momento do acidente, em parte por não ter tido retorno imediato de algumas pessoas para quem liguei, por diversos motivos.  Exalto aqui a presteza do amigo Gilberto Meneguesso, que fez a ponte com o Hospital Regional, o que já me trouxe um alento, diante de uma situação tão extrema, onde até o raciocínio se tornara difícil, também como parte do trauma craniano sofrido. O atendimento imediato, gentil e eficiente do amigo e ortopedista Ericsson Marques, localizado por Roberto Vaz Filho, foi fundamental, e garantiu o futuro sucesso do tratamento que se realiza no momento. 

Outra questão diz respeito especificamente ao afastamento do meu esporte. Isso foi a pior de todas as provações. Nos últimos anos, tenho tido no esporte não apenas uma ponte para o lazer e a manutenção de um bom condicionamento físico, mas também, e principalmente, tenho usado minha bicicleta como parceira de divã, nos melhores e nos piores momentos de minha vida. Já me vi no meio de uma madrugada, sozinho, no meio do mato (confissão inédita até agora!), para fugir de mim mesmo e do mundo, num momento em que via minha mãe em risco de vida (qual outro medo poderia ser maior? um assalto? uma queda? encontro com seres sobrenaturais, nos quais não acredito?). Eu sempre dizia: aguento tudo, desde que me sobre a bike. Mas isso foi-me tirado também, junto com a famigerada queda de fevereiro. Tive de atravessar um período de extremo sofrimento físico e psicológico longe de minha bicicleta. Isso foi extremista. Não tenho como descrever.

Entretanto, há uma centelha dentro de mim, como há em todos, que insiste em renascer, em brotar, em insistir, em não se deixar murchar, como folhas secas no outono. Busquei vida e sobrevivência na corrida. E foi lá que encontrei outras pessoas, que, ainda que não o saibam, foram fundamentais no processo de recuperação que ainda enfrento. Quanto maior a fragilidade, tanto mais fundo chegam o carinho e o afago. Sim, isso ainda existe! Raro, mas existe. 

Pessoas como Allan Emmanuel e Milena Santos, que me abraçaram a alma (e não apenas o corpo), após um primeiro desafio de corrida. O exemplo de Adriano Nascimento e a força de Gileno Santos, impulsionando para um novo esporte, para que a motivação não se transformasse em desistência à primeira tentativa. 

O seio familiar, que sempre é meu porto-seguro e abrigo. Minha mãe, guerreira-mor, exemplo máximo, que, após ultrapassar sua própria guerra interna, virou-se inteiramente para mim, acolhendo-me uterinamente, nesse momento-criança de vulnerabilidade. Meus irmãos, sobrinhos, todos inteiros, cada um com seu jeito, com seus olhares, seus silêncios ou risos nervosos, mas sempre presentes. 

As viagens para João Pessoa, com Luciano Pirro, enchendo o vazio das semanas dolorosas, ajudando a reconstruir uma bicicleta (que substituiu a antiga). Metaforicamente, ajudando a reconstruir um espírito que estava igualmente em reconstituição. Valeu pelas viagens, pelas conversas, por tudo, parceiro. Sem palavras. 

A presença constante, ao vivo e por telefone, de Daniel Dalonio, achando tempo em meio aos intensos compromissos profissionais e pessoais. Daniel foi o mais próximo, o mais onipresente, o mais intenso, a despeito de ser um dos mais novos amigos. Jamais terei como retribuir à altura, exceto sendo ainda mais amigo, ainda mais irmão.

Aos poucos, a vida começa a voltar ao normal. Recomecei a dar laudos. Aulas, provavelmente, semana que vem, se a greve acabar. Ciclismo, provavelmente a partir do final de maio, se o Dr. Bruno deixar!!

Descobri que a maioria das amizades gira em torno de interesses comuns. Quando esses interesses estão suspensos, ainda que temporariamente, a maioria dos amigos também somem. Precisam ser lembrados de que ainda existimos. Há poucas exceções, que confirmam a regra. Uma das grandes lições aprendidas foi redimensionar o sentimento por todas as pessoas que convivem comigo. Hoje, penso que conheço melhor cada um deles. Sei quem são os amigos casuais e os que têm um sentimento mais profundo. 

Principalmente, agora eu sei que, para a maioria das pessoas, as situações extremistas são um desafio para o qual elas não estão preparadas. Exceto em seus próprios seios familiares. Errado? não... provavelmente, eu depositei um excesso de expectativas, às quais estas pessoas não poderiam atender. Mágoas? algumas ainda, mas elas vêm sendo sepultadas, junto com a horrível visão do meu dedo cianótico e deslocado, do sangue que escorria pela minha roupa, manchando minha bicicleta, enquanto eu, sozinho, voltava pedalando para casa, para depois, também sozinho, dirigir até o hospital.

Não quero cultivar mágoas. Tudo será esquecido, numa bela tarde de pedal.