sábado, 31 de outubro de 2015

UMA BREVE VISITA DA DAMA DA FOICE


Na última quarta-feira, dia 28 de novembro, fui vítima de um acidente automobilístico. O nome já assusta. Mas nada chega perto do evento em si. Após uma manobra mal planejada, meu carro UP foi abalroado por trás por um bugue, o qual não consegui ver. Não se se se ocultou no escuro da noite ou no tal do ponto cego por trás da coluna traseira do veículo. O fato é que, durante a curva, senti um forte impacto por trás. Surpreso, percebi que meu carro começava a girar. Vi tudo girando, ouvi sons inaugurais, como o de pneus se arrastando, lataria se amassando e o teto do carro derrapando no asfalto. É tudo muito rápido, mas dá para perceber os detalhes, paradoxalmente. Estranho, quase surreal. No final da capotagem, estava eu de cabeça para baixo, preso pelo cinto de segurança. Olhei para fora e vi dois rapazes se aproximando. Vinham do bugue e pareciam bem. Perguntavam se eu estava ferido, se havia mais alguém no carro. Atordoado, destravei a fivela do cinto, mão no teto do carro e consegui sair, arrastando-me pela janela entreaberta. Imediatamente, uma dúzia de pessoas já se aglomerava ao lado do carro, fazendo perguntas, segurando-me junto ao solo, prendendo minha cabeça. Eu perguntava sobre os passageiros do bugue. Eles mesmos disseram que estavam bem, nada tinham sofrido. As pessoas se juntavam cada vez mais ao sinistro. Perguntavam meu nome, se eu tinha desmaiado, se sabia onde estava, se morava ali perto, quem poderiam chamar. A mente estava completamente atordoada. Tentava me concentrar para saber como otimizar a resolução da situação. Lembrei-me do meu celular. Pedi para pegarem dentro do carro, já que ninguém me deixava levantar. Liguei para o corretor da seguradora, que me deu as primeiras instruções. Lembrei-me dos documentos, eles me entregaram, coloquei no bolso. Documentos do carro? no porta-luvas, alguém pegou. Coloquei no bolso. Controles dos portões, um chip telefônico, tudo me foi entregue e coloquei no bolso. Falava que estava bem, sentindo apenas uma dor superficial nas escoriações do braço esquerdo. Pedia para me levantar, mas era impedido pela pequena e bem intencionada multidão que se acumulara. - O SAMU já vem, diziam eles. Após cerca de 45 minutos, chega o SAMU. A paramédica iniciou o ritual das perguntas, abreviadas ao saber de minha profissão (neurologista). Eu já lhe passara todas as condições prováveis de lesões ou não. Pediu licença, colocou um colar cervical. Uns cinco me seguraram, colocaram numa maca. Para dentro da ambulância. A paramédica perguntou se eu tinha algum objeto de valor no carro, pois poderia estar "depenado" na volta... lembrei da minha mala e do poster que apresentaria no Congresso Brasileiro de Sono, para onde estava indo, pedi para retirar. Ela trouxe a mala para dentro da ambulância. No trajeto, enquanto balançava no trânsito, tentava me lembrar de outros objetos deixados no carro. Relaxei. No pequeno serviço médico de Muro Alto, próximo a Porto de Galinhas, uma outra enfermeira me recebeu, fez outras tantas perguntas. A médica chegou, fez poucas perguntas, mandou-me levantar o braço machucado e chegou à conclusão que se tratava apenas de escoriações. Não haveria condições de realizar exame radiológico do pescoço no posto médico, mas poderia ser feito um RX do braço. Vendo minha movimentação ativa, ela desistiu. Pediu para a enfermagem fazer a limpeza e desinfecções cirúrgica das escoriações no braço. Feitos os procedimentos, tive alta. Tudo rápido e mal feito, a cara do Brasil. Na saída, uma unidade da Polícia Rodoviária Federal me esperava para levar de volta ao local do sinistro. Lá, meu carro parecia um brinquedo, pneus para cima, totalmente amassado. O bugue, com poucos danos materiais, permanecia ao lado do UP, à espera de uma definição. Respondi a uma dezena de perguntas, descrevi o acidente com meu próprio punho, assumindo minha culpa principal. O motorista do bugue fez o mesmo. Os policiais disseram ter encerrado a missão, prometendo entregar o BO em cerca de três dias. Neste ínterim, falei com o corretor da seguradora, que tranquilizou a todos, inclusive ao motorista do bugue, cujos prejuízos seriam totalmente cobertos, inclusive as diárias correspondentes aos dias em que seu veículo ficaria parado, sem condições de trabalho. Braço sangrando, atordoado e sofrido, ainda tive de ajudar a resolver como o bugue seria rebocado, já que a seguradora não providenciaria tal remoção. Paguei para que um taxista removesse o bugue. Depois, fui orientado para permanecer ao lado do pobre carro até a chegada do reboque, que demorou quase uma hora, sob pena de haver um verdadeiro desmonte do mesmo, caso fosse deixado aos cuidados de meliantes da região. Lá fiquei, tendo curiosos e moradores locais como companhias eventuais. Após a chegada do reboque, tive ainda de ajudar o motorista a desvirar o carro e colocá-lo sobre o enorme caminhão. Encerrada a operação, ele me deu uma carona até o hotel, onde passei a noite. Dia seguinte, não sei como, tive forças para ir até o local do congresso, apresentei nosso trabalho (eu e alunos) e voltei, solicitando o taxi a que tinha direito para retornar à minha cidade. Nos dois dias seguintes, tenho experimentado de forma intensa e cruel a chamada Síndrome Pós-Traumática, tão descrita e estudada pela Psicologia. Trata-se de um estado estranho e doloroso que se segue a um evento extremo, geralmente com risco de morte. Um misto de desconexão, dificuldades cognitivas e mnemônicas, expressão lenta e uma extrema sensação de desamparo e tristeza. Não há palavras que consolem. Não há como descrever o tamanho desse fenômeno depressivo, a despeito da ajuda dos amigos e familiares, que, muitas vezes por desconhecerem a potencialidade da síndrome, acham que a vítima deve apenas "esquecer" e "agradecer por estar bem". Infelizmente, tudo é mais complicado e profundo. Sem dúvidas, uma das piores experiências de minha vida.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

REFLEXÃO SOBRE A PROVA LE ÉTAPE DO BRASIL



Para Leonardo Rabello


  De acordo com o dicionário, competição é a "expressão de uma pretensão por parte de duas ou mais pessoas ou grupos, com o objetivo de igualar ou superar o outro." 

  Durante uma recente prova competitiva de que participei, resolvi subverter o objetivo da prova e dar um novo significado, pelo menos dentro de minha visão de valores e sentimentos. 

  Junto a um grande amigo, resolvemos que nossa participação seria compartilhada, construída a dois. Não importava quem venceria, mas sim, se chegaríamos juntos, após vivenciarmos toda a prova lado-a-lado. Conseguimos vencer essa "competição" de não competir!

  Aí, comecei a pensar sobre o significado de vencer, premissa primordial de quem está competindo. 

  Um de nós poderia ter quebrado o acordo informal que estabelecemos e tentar chegar antes, ainda que fosse uma diferença de segundos. Um de nós poderia voltar com o signo de "vencedor da dupla". O que faríamos com tal título? Mostraríamos aos amigos? Compartilharíamos nas redes sociais? Utilizaríamos esse feito como atestado de força ou domínio? Estabeleceríamos que o vencedor foi mais esperto por não ter respeitado aquele acordo informal, baseado única e exclusivamente numa intenção de atitude, sem papéis, sem assinaturas, sem formalização? 

  Em paralelo, que tipo de expectativa ou decepção um teria provocado no outro? Haveria um sentimento real de traição e de abandono, ainda que todo o fato houvesse resultado de uma prova esportiva, sem maiores pretensões ou atributos? 

  Um dos dois poderia ter quebrado a combinação e chegado primeiro. Venceria, claro, a competição. Mas perderia gravemente no quesito de humanitarismo.

  Num determinado momento, parei para ajudar meu amigo numa troca de pneu de sua bicicleta. Enquanto trabalhávamos em conjunto para solucionar o problema, dezenas de ciclistas nos ultrapassaram, salientando ainda mais nosso estresse e a possível eliminação da prova, por ponto de corte. 

  Apenas uma das nossas bicicletas estava com problemas. Mas a nossa dupla estava ferida! A sensação de incompletude foi infinitamente maior do que qualquer pretensão de continuidade. Não haveria vitória plena de um só, diante do que foi previamente combinado, não necessariamente em palavras, mas em atitudes. Atitudes exercidas durante os treinos e em todos os momentos de convivência.

  Parei para ajudá-lo, exatamente como fiz em diversas outras ocasiões e situações diferentes. Não foi novidade, não foi inaugural. Parei, sentindo uma incrível sensação de naturalidade e equilíbrio. E isso já aconteceu de forma recíproca por inúmeras vezes.

  Hoje, agradeço ao destino ter proporcionado aquele momento de pane, em que pude exercer plenamente uma característica humanitária que considero fundamental: a solidariedade. Nada seria mais importante do que compartilhar aquele momento de aflição. Nenhuma medalha, nenhum troféu, nenhum punhado de minutos de vantagem na competição. Nada seria mais importante do que retornarmos juntos à prova.

  Pensei também sobre reciprocidade. No caso específico, tenho certeza de que haveria reciprocidade. Mas vejo hoje que a reciprocidade não foi exclusivamente o que me motivou a parar para ajudar o meu amigo. O que me motivou mais profundamente foi a sensação de exercer uma atitude humana nobre. Ainda que eu tivesse certeza de falta de reciprocidade (o que não é absolutamente o caso), o gesto de solidariedade teria me trazido exatamente a mesma sensação de paz e profundidade espiritual que trouxe. Claro, tudo foi exponencial por envolver um de meus melhores amigos.

  Durante o restante do trajeto, seguimos juntos. Às vezes eu o esperava no alto de uma subida, às vezes o contrário. Mas sempre compartilhando aquele momento que, com certeza, foi único em nossa história.

  Na chegada, igualamos os pneus cuidadosamente, para não haver diferença sequer de segundos, um exagero lúdico de fidelidade esportiva. Funcionou: os tempos foram absolutamente idênticos.

  Desta vez, a competição levou a pior. Venceu a solidariedade. Venceu a amizade.

  Felizmente.