sábado, 20 de novembro de 2010

PELOS SANTOS, BEIJAM-SE OS ALTARES.





Minha mãe não é apenas uma das melhores pessoas deste planeta (quem conhece, sabe disto). É também de uma inteligência rara, sofisticada, que tem me trazido luz em torrentes, ao longo de todos esses anos de uma convivência única, que compõe o lado mais importante do que chamo de "sentido de vida". Em várias de nossas conversas, ela já pronunciou essa frase, que ficou encravada em mim, não só pelo sentido, mas também pela beleza da construção semântica e morfológica. 
"Pelos santos, beijam-se os altares".
Diariamente, a brutalidade da vida nos expõe aos limites da tolerância humana. Nas convivências familiares, nos arranjos e desarranjos profissionais, na batalha pelo pão de cada dia, na aceitação passiva da sujeira dos políticos corruptos, na capacidade infinita que o ser humano tem de surpreender, geralmente no mau sentido.
Diariamente, há momentos em que eu gostaria de estar no alto de uma grande montanha, acompanhado apenas por minha bicicleta, meu piano, uns livros, minha família (alguns membros, eles se sabem) e meus melhores amigos. Há momentos em que eu desejo não ter de exercer a complicadíssima e desgastante arte de "conviver". Mas o monstro biológico que vive dentro de cada um de nós é intolerante, ávido, cruel, determinista, ditador. Na sua ânsia de replicabilidade, urge e torna-se imperiosa a convivência em sociedade. Isso implica em renúncias constantes, em ocultação de nossas mais profundas convicções, tudo em nome de preencher nosso torpe papel social, do qual tanto se espera.
Se conseguíssemos filtrar a gigantesca carga emocional que se acumula no processo de convivência, para que, no final do funil, brotassem apenas micropartículas de momentos felizes, talvez esse lixo tóxico fosse suficiente para criar todo um "planeta-lixo", composto por decepções, lágrimas, desespero, tudo metaforicamente amalgamado numa matéria escura e fétida. Tal planeta-lixo seria absolutamente inútil, e até mesmo prejudicial para a replicação genética que impele nossa existência. Por isso, como sempre de forma sábia, nosso cérebro se encarrega de encarcerá-lo sob disfarces, enterrando-o em profundos porões. Vez por outra, os gases fétidos do planeta-lixo conseguem romper o concreto, e afloram, também disfarçados, sob forma de transtornos comportamentais, desequilíbrios emocionais ou doenças físicas, os quais são adequadamente tratados pela "moderna" medicina, cúmplice do processo de encarceramento emocional crônico, do qual padecemos. Passiva e criminosamente, a sociedade é conivente, investe sua sabedoria e seus lucros financeiros na construção de métodos artificiais de diversão e nos antidepressivos, que vendem como banana. Com este procedimento, fecha-se o ciclo, e o planeta-lixo segue indelével, como convém. E nós continuamos na sociedade, calados, ocultos, surdos aos nossos próprios gritos, impassíveis aos nossos reais anseios, mas, ainda assim, sorrindo, beijando, fazendo mais filhos, preenchendo nossos papéis cotidianos, exatamente como se tivéssemos escolha.
Continuamos beijando os altares, joelhos em chagas, vestes em trapos, coração dilacerado, pelos santos que nos moldaram, construíram nossas normas e seguem numa desabalada corrida, rumo ao nada.

sábado, 6 de novembro de 2010

PRECONCEITO CONTRA IRMÃOS - A REALIDADE DO BRASIL



Mais uma vez, o preconceito contra os nordestinos virou notícia nacional, após a eleição de Dilma Roussef para a presidência do Brasil. Apesar de se saber que Dilma venceria as eleições sem a contagem dos votos nordestinos (os números confirmam isso), o fato de a candidata ter obtido grande maioria na região nordeste foi o pretexto para surgir uma nova onda de manifestações racistas e preconceituosas através da mídia eletrônica, dos blogs e das redes sociais.
O preconceito não é um fato novo na humanidade. Desde que o homem começou a se organizar em sociedade, o preconceito tem sido uma constante. Numa visão mais profunda, o preconceito é um sentimento tipicamente animal (não apenas humano), que visa a eliminar ou neutralizar as minorias, para que as elites majoritárias possam reinar, espalhando suas características biológicas através da replicação genética. A rivalidade que existe entre os felinos de diferentes espécies, por exemplo, poderia ser vista como um "preconceito racial", assim como ocorre entre cães e gatos, gatos e ratos e outros clássicos inimigos do reino animal. Veja que esta rivalidade não implica necessariamente em "matar para comer", mas sim em eliminar um potencial rival, um ser "inferior" que possa "contaminar" o ecossistema com seus genes imperfeitos.
No caso da humanidade, que adquiriu a discutível capacidade de raciocinar, essa disputa ganhou um novo nome: preconceito. Existe preconceito contra todas as minorias da humanidade. Estas minorias, paradoxalmente, não são, necessariamente, menos numerosas. Exemplos: os ricos tem preconceito contra os pobres (os últimos, são maioria numérica, mas minoria em termos de expressão e voz). Os brasileiros ditos "brancos" (existem mesmo?) tem preconceito contra os pardos e negros, embora estes sejam a maioria numérica da população (ainda que, por um estigma histórico, representem menor poder econômico e tenham menor escolaridade). Os heterossexuais perseguem e estigmatizam os homossexuais, talvez porque estes últimos representem, ainda que em minoria numérica, uma postura sexual atípica, que diverge da dicotomia unir-procriar, constituindo uma nítida ameaça à tradicional estrutura rígida familiar, que forma o leito onde se instala e fortalece o núcleo de replicação genética. Ou seja: o preconceito é um sentimento que se volta de classes "dominantes" contra as "não-dominantes", muitas vezes não respeitando o parâmetro numérico.
Os norte-americanos tem preconceito contra o resto do mundo, pois acham que são a locomotiva econômica do planeta, e tem de "resolver" os problemas do mundo, inclusive a fome e a miséria da África, que eles ajudam a manter, graças a uma política externa brutal e desumana, realçada por guerras e invasões periódicas que articulam, com sua gigantesca máquina bélica. 
Os argentinos tem preconceito contra os brasileiros, a quem chamam de "macacos", por se acharem mais "europeus", mais sofisticados e socialmente superiores, embora nossa economia seja muito maior e nossa miscigenação seja uma característica genética interessantíssima, do ponto de vista evolutivo.
Chegamos aos "hermanos" brasileiros. Somos todos originados da mesma salada étnica, da qual não escolhemos fazer parte: índios, negros, europeus, asiáticos. O país foi colonizado a partir da Bahia. Uma parte subiu, outra desceu. A de baixo, por identificação com o clima mais ameno e com condições melhores de agricultura, constituiu o "Brasil de baixo", que se organizou, cresceu e se transformou num pedaço de quase-primeiro-mundo, agregando indústria, serviços, educação, comércio, saúde e todos os outros elementos necessários ao domínio socioeconômico. A de cima teve de se adaptar a condições de grande adversidade: no nordeste, o perverso ciclo de secas terríveis, que transformam o solo em desertos temporários, impossibilita ou dificulta a agricultura, fomenta a desnutrição e afasta os investimentos. A do norte teve de transformar rios em estradas, aprendeu a viver nas florestas, no isolamento, vítimas da distância, das mazelas tropicais, do abandono. O norte e o nordeste do Brasil foram vítimas das próprias adversidades, na gênese de um processo terrível que norteia as bases de replicação do gene egoísta: a guerra pela sobrevivência. 
Num país continental como o Brasil, a sobrevivência depende de adquirir e manter as melhores condições de investimento dos governos (sim, isso está no centro de tudo). Nos últimos cinco séculos, as regiões sul e sudeste foram privilegiadas nesse setor, e muitos moradores daquelas regiões se acostumaram a "aceitar" o norte e o nordeste como "fardos" necessários, até porque a constituição proíbe quaisquer atitudes separatistas. Recentemente, o nordeste começou a dar sinais de uma tímida virada, que pode, futuramente, ser a semente de um enorme crescimento. Sim, caro leitor, as condições adversas de clima não impossibilitam isso. Que sirvam de exemplo o estado da Califórinia (o mais rico dos Estados Unidos, com mais de 80% de seu território localizado em áreas desérticas) e o Estado de Israel (um gigante no Oriente Médio, encravado em área quase totalmente desértica). Todos sempre souberam que o real problema do nordeste não é a seca, e sim, o que se tem feito politicamente acerca desse fenômeno meteorológico. Uma política mesquinha de indiferença e exploração do sofrimento alheio, que se instituiu ao longo dos séculos, isso sim é a grande tragédia nordestina.
Alguns dos "hermanos" sulistas e sudestinos começam a se preocupar. Especialmente porque a região nordeste começa a se acordar, lentamente, como um grande urso que sai da hibernação. Começa a cobrar da pátria-mãe o seu quinhão de leite, um pouco de afago. Começa a entender que a solução dos seus problemas não está em "se Deus quiser", mas sim em "se os políticos quiserem". Fica mais fácil exigir dos políticos do que brigar com Deus... 
Sim, meu amigo leitor, a explosiva reação do gene egoísta se faz sentir, ainda que na ponta de um iceberg, por parte de alguns dos nossos irmãos da parte sul desse país. A mais simples ameaça à divisão do bolo socioeconômico dói como uma unha encravada. 
Infelizmente, ainda vai levar muito tempo, talvez décadas, para que eles entendam que os organismos maiores são mais fortes, mais resistentes. Se virmos o país inteiro como uma "máquina de sobrevivência" para os genes, ela fica infinitamente mais forte se todos os órgãos, inclusive os periféricos, forem corretamente irrigados, se o oxigênio for para todos os setores. 
Enquanto isso, teremos que amargar pensamentos ignorantes e torpes como o daquela estudante de direito, apoiada moralmente por muitos, não se iludam.
Como defesa, temos de exigir a correta punição de todos os que expressaram explicitamente esse preconceito. Numa democracia, todos podem e devem se expressar, mas, em contrapartida, todos são amplamente responsáveis pelo que dizem, especialmente no setor jurídico. Por isso, há que se pensar, antes de falar ou escrever.
Enquanto a justiça não se faz sobre o nordeste e o norte do Brasil, esquecidos durante séculos, que se faça justiça imediata sobre indivíduos que se desesperam diante da simples perspectiva de terem menos reais para gastarem nas boates da paulistana rua Augusta ou nas caríssimas lojas da metrópole, muitas vezes famosas pela sonegação de impostos. 
Faça-se a necessária e justa ressalva acerca dos inúmeros sulistas e sudestinos que amam o país, inclusive as regiões norte e nordeste, e acreditam - assim como os nordestinos - que somos partes indivisíveis desse grande organismo, que começa a crescer e aparecer para o mundo - o Brasil.