quinta-feira, 7 de julho de 2011

O SIGNIFICADO DA ACEITAÇÃO NA INFÂNCIA



Desde o início de nossa vida, e, provavelmente, até o último suspiro, parece-me primordial e universal uma palavra, que possa se converter em gesto: a aceitação.
Irmão de espécie, nascemos com a sina de sermos semelhantes, mas diferentes em tudo. Das características físicas ao temperamento, da orientação sexual aos gostos culinários e esportivos, das escolhas afetivas à capacidade intelectual. Quase imperceptíveis variações das bases nitrogenadas no nosso DNA levam a futuras, e, por vezes, catastróficas diferenças.
A organização da espécie determinou que seria fundamental a convivência em grupos sociais. Grupos unidos são mais fortes, enfrentam com mais sucesso as adversidades do meio ambiente (isso vale também para bactérias, vírus e plantas). Assim, a evolução genética nos implantou uma imperiosa tendência à união, seja fraternal, seja social, seja sentimental. Passamos grande parte de nossa vida buscando ingressar em "comunidades". Inicialmente, grupos familiares. Depois, o dificílimo período de confrontação com a sinceridade/ crueldade das outras crianças. Na adolescência, o furacão hormonal se encarrega de tornar as adaptações ainda mais difíceis e abrangentes. Na idade adulta, quando tudo parecia estar mais claro e definido, surgem as pontes que nos levam de volta ao passado-infância, cruelmente centralizadas nas feridas mais sangrantes ou dolorosas.
De alguma forma, o monstro genético em que nos transformamos cobra uma resolutividade plena para todas as questões do passado. Caso haja pendências ou pontos irresolutos, os tentáculos que partem das margens das feridas nos trazem de volta ao centro, cobrando que possamos esclarecer traumas infantis à luz dos olhos adultos que agora trazemos.
Isso, claro, é uma enorme incoerência da sábia mãe-natureza. Problemas gerados durante a infância deveriam ser solucionados ainda com olhos e mentes infantis em ação. Infelizmente, essa discrepância temporal é a dissonância que leva quase todos aos divãs e/ou às constantes trombadas vida afora.
Ouso dizer que ninguém, absolutamente ninguém pode se arvorar de ter sido totalmente aceito durante a infância, em todas as suas nuances. Sempre há pontos e questões "sangrantes". Uns mais, uns menos, todos padecemos do mesmo mal, que nos sentencia a dolorosos regressos ao passado.
Essa discussão introduz o ponto principal do texto de hoje. O significado de ser aceito, durante a infância. Ou melhor, de ter o máximo de aceitação possível, durante a infância.
Cada característica aceita (pelos pais, irmãos, amigos próximos e outros familiares) será futuramente incorporada como um traço comportamental, emocional ou intelectual. Simples assim. Sem pendências.
Contrariamente, cada característica repelida durante os primeiros anos de infância resultará futuramente numa lacuna em nossa personalidade, cuja gravidade dependerá diretamente da importância dos fatos envolvidos. 
Crianças que não são aceitas, seja por serem diferentes quanto à cor da pele, orientação sexual, diferenças de personalidade ou de intelecto, deficiências físicas ou mentais, dentre muitas outras características, resultarão em adultos incompletos, desconstruídos ou disformes. 
Tais adultos viverão até o final dos seus dias voltando à tentativa frustra de aceitação. Sim, porque se lhes será cobrada a resolução de lacunas infantis, só que vistas com olhos adultos. Resultado: problematização de temas menores, uma característica típica de quem já passou pelos turbulentos anos da adolescência e chegou à idade adulta, pensando que lá encontraria alento para suas dúvidas.
A partir desse grande paradoxo, surgem os conflitos, que, infelizmente, envolvem outros adultos, os quais, certamente, também têm suas lacunas, mas não necessariamente semelhantes. Isso resulta numa incompreensão crônica recíproca, que vai ponteando as relações, ao longo da vida. Conflitos com parceiros, com colegas de profissão, com amantes, com amigos, com familiares. Conflitos diários de linguagem, de corpos, de intenções, de gestos, de expectativas. 
Ao buscar parceiros para dividir nosso dia-a-dia (não porque desejemos, mas porque somos compelidos a fazê-lo, pelo poder aglutinador do gene egoísta que nos constitui), não por coincidência, procuramos aqueles em que notamos abundar o mel que nos falta, nas tais lacunas. 
Ao chegar perto, para saborear deste mel, mal percebemos que ele não nos pertence. Ou não nos será dado facilmente. Ou simplesmente nos será ofertado o aroma, doce, convidativo, trocado por um ferrão de abelha, à tentativa do toque!!
Envoltos em suas próprias lacunas irresolutas, nossos parceiros (amigos, parentes, amantes, colegas) geralmente não têm tempo, disposição, energia, compreensão ou altruísmo suficiente para nos observar profundamente.
Essa questão é ainda pior quando, por um profundo azar, buscamos parceria em pessoas que já têm suas lacunas bem resolvidas, pelo menos as que se assemelham às nossas.
Nessa situação, o sentimento pode progredir de uma quase ingênua incompreensão para um brutal e cruel ato de repelência.
O misto de visões infantil e adulta envolvido na problematização das lacunas leva a um ato necessário, embora extremamente doloroso, de recolhimento. Mais uma vez, agora na idade adulta, é-nos exposto o poder cruel da não-aceitação.
Esse conflito, bem sei, constitui uma das bases de nossa personalidade. Temos de carregá-lo conosco, em cada um dos dias em que vivamos.
Juntamos os pedaços após os confrontos, recuamos e partimos novamente para a busca do preenchimento das lacunas. Uma busca que, há que se saber, não levará a lugar algum.
Assim como a lugar algum nos levará a tentativa de compreensão de todos os porquês ou para quês. Há que se prosseguir, simples e resignadamente. 
Se você, meu caríssimo leitor, tem filhos, pense nisso. Provavelmente, a função mais importante de um pai ou de uma mãe seja a de promover a aceitação. Ainda que tal aceitação implique em conflitos internos (que você deve resolver gritando trancado no banheiro ou praticando esportes).
Afinal, foi você quem decidiu ter filhos. Eles não pediram para nascer.



9 comentários:

Gustavo Farias disse...

É amigo Fábio ... Somos um grande HD, de capacidade infinita, mas sem possibilidade de " Backup" pra fazer a limpeza do sistema.Tudo, absolutamente tudo, que vivemos em qualquer tempo de nossas vidas contribui para a formação do nosso "Eu".O que mais me deixa intrigado, é a capacidade da maioria das pessoas em não entender ou não querer entender esse processo de continuidade da construção do indivíduo...A tendência muitas vezes é de separar por completo as fases..."Isso é besteira, é coisa de criança...","Deixa pra lá, isso é coisa de aborrecente", "Isso é fase, vai passar" dizem estas pessoas... Claro que é fase, claro que vai passar, mas nada é garantido que passe por completo ou que não deixe sequelas psiquicas de difícil cicatrização.A negligência do "Outro" nesse processo sem dúvida será danosa.Na infância temos mais medos, a imposição de dogmas são mais fáceis, não temos a "maldade" ou a "esperteza" dos adultos, muitas vezes não conseguimos interpretar de forma adequada fenômenos banais do cotidiano...É um período de extrema vulnerabilidade!Nosso "HD" está sem antivírus...Somos presas mais fáceis...A escuta,o entendimento, a aceitação, a crítica, a intolerância por parte dos outros...TUDO ganha uma dimensão maior...Dimensão esta que muitas vezes só conseguiremos tentar entender ou resolver quando adultos ao tentar "Limpar nosso Sistema" e recomeçar com as configurações iniciais...Mas aí, aparece uma indesejável mensagem..." IMPOSSÌVEL REALIZAR ESSA OPERAÇÃO".

Unknown disse...

Lindo comentário, Gustavo! o paralelo entre nosso cérebro e o computador foi brilhante. Funciona exatamente dessa maneira, impressionante. Obrigado por contribuir, complementar e, principalmente, compreender minhas palavras. Abraço, amigo!

Clarissa disse...

"Se você, meu caríssimo leitor, tem filhos, pense nisso. Provavelmente, a função mais importante de um pai ou de uma mãe seja a de promover a aceitação. Ainda que tal aceitação implique em conflitos internos (que você deve resolver gritando trancado no banheiro ou praticando esportes).
Afinal, foi você quem decidiu ter filhos. Eles não pediram para nascer."

Sempre pensei dessa forma. Amei o texto, morri várias vezes lendo ele aqui em casa. Se eu, um dia, for mãe, quero ler e reler coisas assim, pra que eu possa aprender a ser melhor, como mãe e pessoa.

Acho que em pleno século XXI, a discussão sobre aceitação deveria estar isenta de tabus, mas, infelizmente,temos tanto a aprender ainda. Espero que possamos construir, um dia, uma sociedade, realmente, livre de preconceitos e do medo de sermos quem somos e ponto final. Quero deixar filhos, só pra que eles possam participar disso.

Beijos, Cla

Unknown disse...

Kakazilda, você já é uma pessoa diferente. Vocês todos (sobrinhos) são, felizmente. Livres, leves, tolerantes. Praticam o exercício da aceitação diariamente. São bem resolvidos.
Tenho certeza absoluta de que seus filhos serão privilegiados pela linda mãe (em todos os sentidos) que você será!
Fico feliz por ver as novas gerações tendo mais facilidades na vida, ainda que, para isto, as gerações mais velhas tenham tido de roer duríssimos ossos. Assim caminha a humanidade!!
Beijo, te amo !!!
TTZ.

Adriano Nascimento disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Adriano Nascimento disse...

Cara, parabéns pelo texto! Você consegue descrever a problemática do ser humano de forma interessante! Agora, fica a pergunta: Essas lacunas, apesar de todos a problemática que as envolve, teriam um papel importante na evolução do ser humano? Quantos gênios, já surgiram dentro de um contexto total de falta de aceitação? Interessante essa nossa vida.. O tão essencial oxigênio que alimenta nossas células, oxida a ponto de destruí-las!!

Unknown disse...

Adriano, perfeito o seu comentário, amigo. Realmente, as tais lacunas geram pontos de instabilidade, cuja magnitude pode levar a uma reação construtiva, desde que se saiba como formatar. A busca de autoafirmação, de equilíbrio e de aceitação pode ser o alicerce para a construção de uma carreira profissional brilhante, por exemplo. Metaforicamente, como você citou de forma brilhante a questão do oxigênio, as lacunas que poderiam destruir uma personalidade, são as mesmas que podem ser o combustível para a evolução pessoal. E, consequentemente, da humanidade, como um todo. Abraço, irmão!

Cnthia Araújo disse...

Que texto maravilhoso! Me identifiquei de cara (quem não o faz?), principalmente pensando no fato de ser mãe e, portanto, responsável pela construção e formação de outro ser... E que responsabilidade! No início da maternidade, minha preocupação era a perfeição... Mas como isso não existe, percebi que o mais importante mesmo era simplesmente ser mãe e deixar minha cria seguir seus próprios passos, com algumas eventuais orientações, que podem ser seguidas ou não. Tento respeitá-la e fazê-la perceber o quanto é importante se amar sempre e se aceitar como ela é.
Tomara que dê certo... Esse é o meu atual desejo de mãe...
Um cheiro grande

Unknown disse...

Cinthia, não tenho dúvidas de que Alice será tranquila e bem resolvida, especialmente porque vocês assim o são. O equilíbrio parte da harmonização dos pais, principalmente. Boa sorte nessa jornada linda e difícil, que é a de educar um filho!!